27 07 2004

Ainda a Gravura – Novas reflexões

 

Mais uma vez me são colocadas interessantes questões que envolvem toda a problemática da Gravura contemporânea. Diga-se, em abono da verdade mas sem nenhuma carga irónica, que parece haver, de momento, uma vaga de reflexão sobre esta problemática.

Quando em 1996, com o apoio da Fundação Gulbenkian, iniciei um conjunto de reflexões sobre o assunto, que se tem prolongado até hoje, o mínimo que sobre os meus trabalhos escritos e investigações nesta área se dizia era “bizarria”, “inutilidade”. Na altura não se questionava o meio adstrito à Gravura como hoje, nem se levantavam os mesmos problemas. Lembro a exposição que fiz com David de Almeida na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Maio de 1994, exposição dedicada à Gravura experimental, em que ainda estavam pouco definidos os mecanismos conceptuais e normativos da Gravura experimental, gerando-se sempre alguma confusão com monotipos ou processos para-pictóricos. Cristina Azevedo Tavares, no texto que teve a amabilidade de escrever para o catálogo dessa exposição, teve a percepção e o entendimento do que estava a ser posto em causa quando afirma, a certa altura: «Por um lado, tentando em ambos os casos fugir-se às mezinhas da gravura, por outro, na obtenção de uma relação diferente da matriz com a impressão, ao fazer-se apenas uma gravura original de cada chapa». 

 

Uma das situações essenciais para o entendimento da Gravura experimental, quer na sua conceptualização, quer na possibilidade de encontrar uma definição que corresponda a uma formalização, passa necessáriamente pelo entendimento da história do múltiplo, em todas as suas vertentes – sendo a sociológica, porventura, uma das mais importantes.

O fantástico incentivo dado às oficinas de gravura, durante o Renascimento, o seu crescimento artístico, técnico e comercial, está associado à Gravura de reprodução e à emergência da burguesia mercantilista e urbana. A capacidade económica para aceder à obra original ainda não existia. Mas a “necessidade” de arte, sim. A possibilidade de se aceder a uma reprodução, de baixo custo, está na origem da proliferação das oficinas gráficas renascentistas. Por outro lado, é evidente o desenvolvimento comercial associado ao múltiplo literário e, nessa época, também à cartografia. A importancia do múltiplo em termos da cartografia, é uma vertente ainda pouco estudada mas de extremo interesse.

A assumpção do meio com a legítima autonomia que se lhe reconhece, é uma realidade que se cruza na história com a chamada gravura de reprodução, muito embora, esta tenha sempre sido prioritária e, por assim dizer, delimite o desenvolvimento da autonomia específica da linguagem gráfica. Os casos pontuais de Dürer, de Seghers ou mesmo de Rembrant, não têm, do ponto de vista da história da gravura de reprodução, a relevância que, legítimamente, se lhes atribui artísticamente. O reconhecimento das especificidades da linguagem gravada e o consequente desenvolvimento da chamada gravura original só vem a ter pleno direito nos finais do século XVIII e, mais concretamente com Goya. Mas o peso histórico desse cordão umbilical chamado múltiplo vem a manter-se até ao século XX.

 

Vivemos hoje num mundo de múltiplos, de que o objecto gravado ocupa um dos últimos lugares, pela sua insignificância. Os múltipos ao nível de outras formas de expressão, nomeadamente a literária, musical, fílmica, ultrapassam em muito qualquer tipo de eventual relevância que se quisesse atribuír ao múltiplo gravado. Aliás, o primeiro corte nesse cordão umbilical que históricamente ligou e liga a obra gravada ao múltiplo, verifica-se com o aparecimento e desenvolvimento técnico dos primeiros processos de reprodução fotográfica, nomeadamente de reprodução de obras plásticas originais. Progressivamente, ao longo do século XIX e XX, as novas tecnologias de reprodução de imagens foram retirando sentido à gravura de reprodução e, progressivamente à própria razão de ser do múltiplo enquanto processo de multiplicação de imagens gravadas. Esse sem sentido da multiplicação da imagem gravada, que já não se justifica pela sua divulgação e, muito menos, por razões comerciais de redução de custos, tem como consequência criar um espaço de autonomia e de emancipação da imagem gravada, espaço em que, actualmente, se geram todo um conjunto de reflexões sobre o estatuto da Gravura enquanto linguagem autónoma, portadora de uma identidade específica e suportada históricamente.

 

Uma das situações avançadas em 1996, relativamente a toda esta problemática, no trabalho realizado para a F. Gulbenkian, tinha a ver com a distinção fundamental entre duas qualidades passíveis de serem atribuídas às matrizes, qualidades que poderiam ter correspondência formal nas atitudes, no decorrer do processo criativo. Na altura qualifiquei as matrizes segundo duas categorias, a saber: matrizes de reprodução, em que o objecto Gravura, sendo sempre um objecto simbiótico criado a partir da necessidade de (im)pressão de dois objectos sem visibilidade específica (uma matriz e um suporte), se assume no plano da estaticidade, mantendo relações formais idênticas de impressão para impressão e, por aí, vinculando-se ainda a uma tradição de múltiplo. E matrizes evolutivas, conceito subjacente à produção de Gravura dita experimental, em que as matrizes não só evoluem internamente de impressão para impressão mas, também externamente, mantendo com o suporte relações formais sempre diferentes. Mas aqui o suporte também já não é um objecto passivo e receptivo a qualquer matriz. Tratava-se antes da criação dinâmica de interacções únicas entre espaços gráficos: por um lado a matriz, por outro um suporte transformado em espaço gráfico dinâmico, capaz de suportar uma única impressão, criado exclusivamente para esse fim.

A ideia da interactividade exclusiva entre matrizes e espaços gráficos, tem bastante a ver com a proposta de reflexão a nível internacional, nomeadamente em relação àquilo que poderíamos chamar geographic transfers e que passa pela inscrição, reprodução ou im-pressão das marcas deixadas na terra por organismos vivos e das tensões críticas que derivam da expansão formal de suportes que sustenham estas im-pressões. Passa pela violência, a guerra, os conflitos humanos e as cartografias mentais e físicas, enquanto mapas e diagramas das deslocações. Aqui o que temos, para além da aparente aleatoriedade das marcas deixadas pelas deslocações é também a transformação do suporte provocada por essas marcas. À escala planetária, retomamos, de alguma forma, o fio de Ariana, na utilização do mundo como suporte prioritário para as marcas gravadas. Obviamente não se extingue aqui a transposição de escalas e a recolha em suportes outros dessas marcas. Mas, novamente, o que temos subjacente a esta ideia é a interacção dinâmica entre marcações matriciais e suportes contidos ou expandidos, numa relação simbiótica específica.

Esta dinâmica clarifica o espaço do objecto gráfico, nomeadamente porque se distancia (quase arriscaria dizer, se isola) do matrix gráfico visível, desde a imprensa à internet, e que, esse sim, continua contemporâneamente o longo percurso histórico do múltiplo.






16 07 2004

Para uma nova definição de Gravura



Trienal Poli/Graphica, San Juan 2004.

No circuito das grandes exposições e bienais internacionais de Gravura, desde hà muitos anos se acentua uma profunda incapacidade de comunicação entre os gravadores europeus e os seus colegas americanos. Diga-se, em abono da verdade que, se do outro lado do Atlântico sempre houve um individualismo e um desinteresse evidente pelo que se faz na Europa, também não é menos verdade que do lado europeu se foram criando algumas resistências só ultrapassadas pontualmente. Neste domínio há que salientar o esforço desenvolvido pelo Museu Nacional de Reykjavik, na Islândia, com a organização de exposições como a Graphica Atlantica Europe/USA que teve como objectivo justamente juntar um conjunto de obras de gravadores europeus e norte-americanos e que veio na sequência de outra importante organização, a Graphica Criativa, na Finlândia.



Vladimir Velickovic, Água-forte, 1987.

Um dos problemas subjacente a este desentendimento, ou melhor, a esta falta de diálogo entre gravadores europeus e americanos vem justamente da oscilação presente relativa à definição de Gravura. Esta situação era já sentida hà uns anos, nomeadamente quando Leslie Luebbers, no texto de introdução à Graphica Atlantica, afirma a dado passo: “Perhaps the distinction is here best exemplified by the current difficulty in defining the word “print” itself. In an era characterized by permeable media frontiers, many Europeans still occupy themselves with border patrols, while their transatlantic cousins join raiding parties gleefully appropriating any means that may serve an artistic cause.” E mais adiante, prossegue: “American artists aggressively seek sources beyond the European tradition in Asia and among the indigenous peoples of their own continent, as well as in their popular culture which by now has evolved a post-European character of its own. Europeans may regard these practices as evidence of adolescent excess, and they are not entirely wrong. North American art, it must be remembered, was overwhelmingly derivative and, indeed, very conservative in its derivations until after World War II”.



Emma Karp, digital print, 187×281 cm, 2000.

Mas, se tudo o que atrás ficou dito é verdade, não deixa também de ser verdade que nos últimos anos houve notoriamente uma “abertura” ao nível dos meios mais tradicionais, com a organização de grandes exposições como o EuroPrint em que a própria Comissária da exposição, Anne Seppanen, no convite endereçado aos 15 artistas europeus, estimulava a participação com obras que, de alguma forma, desafiassem o entendimento convencional da Gravura.

Esta discussão relativa à definição de Gravura tem tido carácter de urgência, principalmente nos países com maior tradição nesta forma de expressão, nomeadamente na Polónia onde os gravadores têm vindo a abordar as novas tecnologias com a capacidade de reflexão sobre os meios que lhes proporciona uma longa tradição. No diálogo frequente que tenho mantido ao longo dos anos com a Comissária da Bienal Internacional de Lódz, Anna Orzeszko, amiga de longa data, pude aperceber-me da pertinência desta nova definição de Gravura, nomeadamente para estabelecer os limites admissíveis do meio no contexto de uma organização como a de Lódz que envolve dezenas de artistas. Pude, de alguma forma, colaborar nessa definição, defendendo a ideia, já exposta no trabalho apresentado à Fundação Gulbenkian em 1998, que, independentemente dos processos técnicos envolvidos ou, até, da incapacidade de resposta ao processo tradicional do múltiplo, a Gravura é sempre um objecto simbiótico que compreende dois factos que isoladamente não têm visibilidade (ou aos quais não se pode atribuír propriedades específicas): uma matriz e um suporte.



Izabella Gustowska, técnica mista, 1987.

Neste contexto, as ideias que envolvem a primeira edição da Trienal Poli/Graphica de San Juan, em Puerto Rico, são extremamente interessantes e, de alguma forma, um dos primeiros passos dados pelos artistas do outro lado do Atlântico de séria reflexão sobre os problemas conceptuais que se pôem à Gravura contemporânea.

A exposição tem como título Trans/migrations: Printmaking as Contemporary Art e a proposta básica que é feita passa pelo reconhecimento das transformações que ocorreram na última década com o aparecimento e a divulgação de novas tecnologias, nomeadamente o acesso à fotografia digital, scanners, impressoras e tudo o que isso implicou do ponto de vista sociológico no acesso do público à imagem. Por outro lado, todos estes novos meios provocaram uma deslocação dos artistas relativamente aos meios tradicionais da Gravura, fazendo com que, nos últimos anos, a Gravura tenha funcionado muito mais como um meio do que como um fim. Assim, viu-se surgir um espaço poligráfico para a Gravura que adivinha uma redefinição da Gravura enquanto prática artística contemporânea.



Isabelle Lutz, água-tinta, 2001.

A exposição propõe, assim, três eixos fundamentais de exploração artística: technological displacements, geographic transfers e conceptual trajectories.

Neste contexto, são propostos três temas de reflexão e produção, a saber:

Impugnations, inscrição, reprodução ou im-pressão das marcas deixadas na terra por organismos vivos e das tensões críticas que derivam da expansão formal de suportes que sustenham estas im-pressões. A violência, a guerra, os conflitos humanos e as cartografias mentais e físicas, enquanto mapas e diagramas das deslocações.

Grids. Insertions, intervenções em espaços públicos, a imprensa, a internet e toda a reflexão que se prende com um matrix gráfico.

Off Register, reflecte a nostalgia dos meios tradicionais da Gravura e o desejo de ampliação do seu status.

Inaugura a 12 de Outubro.



Manuel Castro Cobos, técnica mista, 2000.





13 04 2004

Notas dispersas

A Gravura, na sua ancestralidade, não remete para nenhuma forma de representação. É, antes de tudo, um sinal de presença, reflexo da consciência de si, uma marca de existência deixada indelével num ferimento nas matérias do mundo enquanto “suporte” dessa existência.

Neste sentido, é talvez abusiva a denominação de Gravura quando nos referimos a algumas incisões em pedras ou rochas ao nível do paleolítico, mesmo quando já se impõe a representação de algo do mundo. Continuam a ser simples incisões profundamente ligadas aos lugares – destinadas a ser visitadas e não divulgadas.

Este aspecto da incisão, anterior à aposição de matéria sobre matéria, própria da pintura, remete para uma cronologia da consciência. Ou seja, o mundo ainda não é suporte de uma virtualidade; é apenas suporte de uma presença. A relação entre a presença e o lugar é óbvia.

A muito estudada e comentada sacralização de lugares poder-nos-ía remeter para uma primeira abordagem deste processo que se opera segundo um eixo vertical.

A virtualidade da pintura, cronológicamente posterior, funda-se já num processo de consciência que ultrapassa o si e encontra o outro, operando-se segundo um eixo horizontal.

Nesta reflexão sobre as incisões ancestrais, estamos ainda distantes da possibilidade de multiplicação das imagens, característica fundamental daquilo a que podemos chamar Gravura.

Conceitos de multiplicação da imagem

Um dos conceitos primários da multiplicação de imagens remete ainda para a ideia de visitação de lugares. Com efeito, a Enciclopédia Britânica, no Vol. XXVI, pág. 69, avança com esta curiosa informação: By the end of the 2nd century AD, the chinese apparently had discovered, empirically, a means of printing text; certainly they then had at their disposal the three elements necessary for printing: (1) paper, the techniques for the manufacture of which they had known for several decades; (2) ink, whose basic formula they had known for 25 centuries; and (3) surfaces bearing texts carved in relief. Some of the texts were classics of Buddhist thought inscribed on marble pillars, to which pilgrims doubtless applied sheets of damp paper, daubing the surface with ink so that the parts that stood out in relief showed up; some were religious seals evidently used to transfer pictures and texts of prayers to paper.

Esta ideia de transfer daquilo que foi inciso para um suporte outro, implica uma visitação não “inocente” do lugar; e, também, a posibilidade desse lugar “estar” em todos os lugares através da criação da virtualidade do lugar. Não que a linguagem do imaginário fosse inocente. Mas ela ainda se encontrava, ao nível da matéria pintada, presa aos lugares. A primeira emancipação da imagem dá-se justamente através do material gravado e da possibilidade de o transferir para outro suporte. Ao nível da pintura, a invenção móvel e mercantil do “quadro” enquanto coisa que se pode ligar a qualquer lugar, teria ainda que esperar cerca de 1500 anos.

Multiplicação e mecanicismo

O que adiante se escreve, desmente o que o autor deste blog escreveu há pouco:

A técnica de duplicar imagens tem vários milhares de anos mas encontramo-la já sistematizada entre os Sumérios (cerca de 3000 anos a.C.). Eram então usados cilindros de pedra como suporte de gravação de desenhos e inscrições cuneiformes. Faziam-se, então, rolar estes cilindros sobre placas de gesso, deixando impressos, em relevo, os elementos gravados. Este é um dos processos mais antigos de impressão que reflete não só o conceito de multiplicação mas também um dos princípios de um sofisticado processo mecânico.

Encontrei este apontamento sobre os Sumérios no livro de Walter Chamberlain “Etching and engraving”. Curiosamente, não andará distante da referência da Enciclopédia Britânica sobre os princípios da multiplicação de imagens com excepção à referência a um mecanicismo. O princípio da multiplicação da imagem relacionado com um processo mecânico remete para um conceito importante que nos distancia da referência da Enc. Britânica: já não se trata da visitação de um lugar e da transferência desse lugar para qualquer lugar mas da utilização de um lugar como “modelo” a ser tranferido. Ou seja, o que está aqui presente é a primeira ideia de matriz.

O lugar – ou a ideia fragmentada dele – passa a constituír-se como coisa matricial no contexto de uma intenção multiplicadora de lugares.

Ainda a multiplicação de imagens

No capítulo “Terminologie – Principes généraux” do livro de Ales Krejca “Les Techniques de la Gravure” é-nos dito: Le terme «gravure» dérive du grec graphein qui signifie écrire ou dessiner, et recouvre, dans sa plus large acception la transposition de formes vues ou ressenties en un système de lignes, de points et de surfaces. Au sens strict, il s’agit du passage créateur d’un dessin artistique libre à l’élaboration d’un matériau approprié dans le but d’en obtenir l’empreinte, c’est-à-dire de produire un certain nombre d’exemplaires de l’oeuvre.

Há aqui a adição de um conjunto de curiosos conceitos que fazem a reflexão passar para códigos outros, como a escrita ou a obra ou o exemplar (fazendo-me sempre lembrar a rigorosa distinção que J.L. Borges faz entre o espelho e a réplica), mantendo-se, no entanto, a ideia de transposição e de produção da multiplicação através de “um certo número de exemplares”.

Acentua-se, assim, este “cordão umbilical” da coisa gravada com a multiplicação por transposição.

Ainda a multiplicação de imagens

Num determinado sentido, a coisa gravada desloca-se originalmente do âmbito do objecto estético para ser antes e apenas presença testemunhal. E embora possamos encontrar alguma representação do mundo, não temos relação com nenhum sistema de representação. Só muito mais tarde, o objecto gravado se poderá enquadrar no universo dos objectos estéticos representativos. De início, tem apenas valor simbólico. Há, na sua origem uma espécie de incompatibilidade “fisiológica” com o objecto artístico. A coisa gravada é usada para marcar o lugar mas sem ostentar “vontade artística” no sentido em que Riegl usou este termo. E, como Panofsky observaria mais tarde, a existência de Kunstwollen obriga à criação de sistemas de representação. É interessante também reflectir sobre o carácter determinantemente simbólico da visão psicofisiológica primária, anterior ao desenvolvimento da representação artificial. E, se é verdade que os sistemas de representação artificial do mundo, descrições ao serviço de uma eventual narrativa, inventam um universo normalizado e matemático, também é verdade que este processo nega a visão esferóide e, embora creditando novos conceitos (infinitude, valoração homogénea, quantum continuum), pode ser lido como um processo funcional que, embora não destituído de relação com a aptidão original, de alguma forma a subjuga a um mecanismo normativo.

Podemos encontrar na história do múltiplo dois momentos que se comportam como parentes afastados. Antes de mais, a marcação simbólica do lugar é muito anterior à vontade descritiva do mesmo. E, num primeiro momento, o múltiplo, por transposição (por decalque) apodera-se do carácter simbólico do lugar e provoca a sua “mobilidade” imaginária. Num segundo momento, a descrição ou narrativa do lugar (e aqui o lugar considerado como fenómeno histórico) ganha protagonismo. Esse protagonismo existe até préviamente na marcação histórico-cronológica do lugar enquanto suporte de uma narrativa exterior. Mas, por outro lado, a descrição do lugar suscita a formação de um suporte outro e situa-se no contexto da réplica.

Do que ficou dito antes, poder-se-ía (talvez) deduzir: existem dois momentos (ou movimentos) presenciais. Um primeiro que remete para uma atitude pré-filosófica, simples constatação da(s) existência(s) e assumpção da marca. “Estou aqui e isto está aqui comigo”. Neste primeiro momento, o mundo é ainda o suporte, a matriz. A marcação dos lugares e a sua sacralização pode eventualmente ser “retirada” e tornada móvel; mais tarde, pessoal.

Mas a própria marcação do lugar suscita “vontade artística”. Essa marcação é importante. Aquele lugar é importante. O lugar torna-se suporte dessa intenção. Mas, nesta alteração, perde o seu carácter matricial. Há que inventar outra matriz. Uma matriz anónima, lugar da narrativa.